Durante a maior parte do tempo em que vagou a esmo pelo cosmo, o planeta
conhecido como Terra não teve relevo, cheiro e nem cor, semelhante a uma grande e vazia esfera
de grafite, com superfícies perfeitamente planas e entediantes.
Preso às memórias da época em que as areias do tempo ainda caíam, Charon costumava visitar
aquele planeta esquecido e sentar-se no vazio, igual a todos os outros vazios, por onde um dia
passou o rio Estige. Foi quando uma ninfa curiosa, vinda de alguma estrela ou sonho perto dali,
aproximou-se e perguntou ao ancião o que ele fazia num lugar tão desolado.
Charon contou-lhe que sentia falta dos homens. À exceção de registros em volumes há muito
perdidos, há poucas evidências de que eles tenham realmente existido. Mas Charon, por ter
transportado cada um deles em seu barco, do primeiro ao último, pelos rios Estige e Aqueronte até
as portas do Hades, era um dos poucos que ainda se importava em lembrar.
“Tão pequenos e tão frágeis. Eram pouco mais do que um amontoado de tecidos, ossos e pouca
consciência”, descreveu. “Mas por breve instante reinaram sobre seres muito mais poderosos e
dignos.”
Contou-lhe sobre suas emoções, tão únicas e efêmeras, riu de suas criações, vistas como meros
deboches pelos deuses, erigidas com base em interpretações obtusas de suas leis.
A visitante ficou estupefata ante os relatos de espécie tão notável, que desapareceu de forma tão
repentina, como se os deuses quisessem apagá-la de seus livros. Ao lado de Charon, a ninfa
percorreu a lisa esfera de grafite, tentando imaginar onde outrora houve cidades, florestas e
sonhos. E em meio a todo aquele vazio histérico, Charon apontou o dedo para a única construção
remanescente:
“É uma casa”, disse o barqueiro. “Coisas inomináveis aconteceram aí. Personagens e feitos que
por milênios inspiraram pesadelos. Foram-se seus habitantes, vieram os outros, foi-se a floresta,
vieram as cidades, foi-se o mundo, vieram os demônios, foi-se o tempo, veio o nada. E, da era dos
homens, esta pequena casa foi tudo o que restou.”
A ninfa se aproximou da construção e tocou as paredes esbranquiçadas, feitas de barro e pedra
amontoados sobre lascas de árvores. Abaixou-se para passar pela pequena porta redonda, e
observou o interior repleto de objetos de formas indecifráveis. Depois de alguns instantes em
silêncio, perguntou: “Diga-me, barqueiro, qual o nome do homem que construiu tal maravilha,
capaz de resistir ao tempo, ao vento e ao fim?”
“Homem?”, riu Charon. “Não foi um homem quem construiu esta casa. Foi um porco.”
Retirado do Livro "Branca dos Mortos e os Sete Zumbis E outros Contos Macabros - Fábio Yabu"
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